Jules Supervielle e Drummond*

Jules Supervielle e Drummond*

Por Marlova Aseff

Da chamada “tríade” de poetas franco-uruguaios – Conde de Lautréamont, Jules Laforgue e Jules Supervielle – somente esse último ainda não teve traduções de seus poemas editadas em livro no Brasil. Os cantos de Maldoror, de Lautréamont, foi traduzido por Cláudio Willer e lançado ainda na década de 1970 pela editora Vertente. Essa tradução foi revista e publicada novamente pela Max Limonad em 1986 e pela Iluminuras em 2014. A Obra completa, incluindo os Cantos, cartas e outros poemas foram publicados em 1998 pela Iluminuras, também em tradução de Willer. Já Laforgue teve o seu Litanias da lua editado em 1989 pela mesma editora, com tradução de Régis Bonvicino, e a Sette Letras publicou Últimos poemas do pierrô lunar em 1997, em tradução de Luiz Carlos de Britto Rezende. Além disso, alguns poemas de Laforgue e Lautrémont constam de antologias, o que não ocorre com os de Supervielle. Fora os raros poemas publicados em sites e revistas, em livro, a única obra traduzida editada no Brasil que encontramos foi a peça O boi e o jumento do presépio [Le boeuf et l’ane de la creche], por Abgar Renault (MEC, s/d; e Belo Horizonte: Mazza, 1995).

No entanto, a obra de Supervielle foi bastante admirada por um dos nossos mais aclamados poetas: Carlos Drummond de Andrade. No livro Influências e impasses (2003), John Gledson resgata a importância do poeta franco-uruguaio na obra do poeta brasileiro.

Mas quem é, afinal, esse poeta pouco conhecido no Brasil e que, conforme sustenta Gledson, teve influência tão “fascinante” sobre a poesia de Drummond?  Supervielle (1884-1960) foi narrador, dramaturgo e, acima de tudo, autor de uma poesia de estilo muito pessoal. Nasceu em Montevidéu, em uma família francesa ligada ao ramo financeiro. Ficoui órfão aos oito meses de idade. Criado pelos tios, aos 10 anos foi enviado à França para estudar. Passou a vida entre a Europa e a América do Sul. Entre os três poetas franco-uruguaios, Supervielle foi quem evocou mais diretamente em sua obra a vida no continente americano.

Para Gledson, Drummond sentiu-se atraído por Supervielle devido “à sua gaucherie partilhada” (Gledson, 2003, p. 97). Para ele, ambos sofreriam de certa “inadequação social” por estarem “em uma posição intermediária entre o mundo da imaginação e o subconsciente, por um lado, e o entendimento do público, por outro” (Ibidem, p. 101). Sobre a preocupação de que sua poesia fosse  compreendida por todos, Supervielle deixou o seguinte depoimento:

Pour moi ce n’est qu’à force de simplicité et de transparence que je parviens à aborder mes secrets essentiels et à décanter ma poésie profonde. Tendre à ce que le surnaturel devienne naturel et coule de source (ou en ait l‘air). Faire en sorte que l’ineffable nous devienne familier tout en gardant ses racines fabuleuses. […] Je n’ai guère connu la peur de la banalité qui hante la plupart des écrivains mais bien plutôt celle de l’incompréhension et de la singularité. N’écrivant pas pour des spécialistes du mystère j’ai toujours souffert quand une personne sensible ne comprenait pas un de mes poèmes (Supervielle 1951, pp. 60-61).

[Para mim, é somente pela simplicidade e pela transparência que consigo abordar os meus segredos essenciais e decantar a minha poesia profunda. Tendo a que o sobrenatural se torne natural e transpareça (ou tenha ares de transparência). Faço de modo que o inefável se torne familiar, ao mesmo tempo em que guarda as suas raízes fabulosas. […] Não conheci o medo da banalidade que assombra a maior parte dos escritores, antes, conheci o medo da incompreensão e da singularidade. Como não escrevo para os especialistas em mistério, sempre sofri quando uma pessoa sensível não compreendia um dos meus poemas (Tradução minha).]

Em seu estudo, Gledson resgata um tributo publicado por Drummond por ocasião da morte do poeta franco-uruguaio, no qual Drummond revela profunda devoção por Supervielle:

Não conheci pessoalmente Jules Supervielle, nunca recebi dele uma linha. Entretanto, sinto sua morte como a de um amigo chegado. A explicação é simples, amo sua poesia há mais de trinta anos, e relações desta natureza criam uma espécie de intimidade, que não depende de conhecimento individual. [….] Sua poesia tinha algo de muito especial mas indefinível à primeira vista ou à luz das ideias estéticas em voga. Era canção, melodiosa mas discreta, de um homem que aprofundava sua condição de homem, e tentava mergulhar na essência da natureza, surdamente, suavemente, como quem vai de leve e devagar por uma estrada cada vez mais estreita, mais escura ­– estrada que tanto pode conduzir a uma floresta, como a um reino submarino, a uma paisagem pré-histórica, ou, quem sabe, a um universo gasoso (Drummond apud Gledson 2003, p.93).

 A relação entre Supervielle e Drummond faz com que a poesia de Supervielle revista-se de significados tanto para a crítica como para o público brasileiro. No entanto, como falamos anteriormente, a sua produção poética não chegou ao Brasil em traduções.

Amigo de Rainer Maria Rilke, com quem se correspondia regularmente, de Henri Michaux e de Jean Paulhan, incentivador da obra do uruguaio Felisberto Hernández, freqüentador do atelier de Tarsila do Amaral durante as temporadas da pintora em Paris, Supervielle era uma figura intrigante e que se manteve independente dos movimentos literários do início do século passado, principalmente do surrealismo, muito difundido após o manifesto de André Breton de 1924. Zum Felde ( apud Brando, 2001, p, 267), afirma que “dentro de um sóbrio equilíbrio convergem em sua poesia a imagem criacionista do surrealismo, a emotividade lírica e a nudez construtiva da forma, desprovida de todo luxo decorativo”.  Alguns temas recorrentes em sua poesia são os fantasmas do inconsciente, a presença escondida de Deus, a angústia perante a morte, jogos sutis com a linguagem, além dos lapsos da memória. Mas deixemos que o próprio poeta fale do que podemos encontrar em seu poema:

Allons, mettez-vous là au milieu de mon poème […]

Vous y trouverez un air, un ciel plus cléments que l’autre,

Dans un grand imprévu d’arbres ignorés par les saisons,

Une attentive floraison comme aux premiers jours du monde.

( La fable du monde, p. 108)

 

[Vamos, entre no meio do meu poema […]

Você encontrará um ar, um céu mais piedoso do que o outro,

Num grande inesperado de árvores ignoradas pelas estações,

Uma cuidadosa floração como nos primeiros dias do mundo (Tradução minha).]

Em seus primeiros poemas, o franco-uruguaio adotou formas tradicionais, passeando por influências parnasianas, simbolistas e também do modernista Rubén Darío (como em Brumes du passé, de 1900, e em Comme des voiliers, de 1910). A proximidade a Jules Laforgue o ensinou a cultivar o humor, o que resultou na antologia Poèmes de l’humour triste, de 1919. Mas é somente a partir de Débarcadères (1922) que ele começa a se libertar das antigas influências, escrevendo a primeira de suas antologias em verso livre. Nela, se percebe o gosto pelas viagens que costumava fazer em companhia de Valery Larbaud (1881-1957), francês que popularizou os diários de viagem. Nessa antologia há, inclusive, um poema intitulado “L’escale brésilienne” [“A escala brasileira”].

O poeta esteve no Brasil diversas vezes. Em 1930, visitou cidades mineiras numa viagem que ficou registrada no relato autobiográfico Boire à la source. Depois de escrever um romance fantástico (L’homme de la pampa, 1923), Supervielle principia a exploração de aspectos mais profundos da sua personalidade em Gravitations (1925), Le forçat innocent (1930), Les amis inconnus (1934), La fable du monde  (1938). Publicou também narrativas, como Premiers pas de l’univers e L’enfant de la haute mer. Para o teatro, escreveu peças como La belle au bois e  Le voleur d’enfants. Pela antologia Oublieuse mémoire, publicada em 1949, Supervielle recebeu o Prix des Critiques e, em 1955, foi contemplado com o prêmio da Academia Francesa pelo conjunto da obra. Le corps tragique, espécie de meditação sobre a morte, publicada em 1959, foi seu último trabalho.

Na obra de Supervielle, a reflexão sobre o passado, as origens e a memória em si mesma foi substrato para muitas de suas criações.  A propósito da memória na obra de Supervielle, Blanchot (1960, p. 747) escreveu que

l’oubli est la vigilance même de la mémoire,

la puissance gardienne grâce à laquelle se préserve le caché des choses

et grâce à laquelle les hommes […] reposent dans le caché d’eux-mêmes”.

homem pampa
Capa da tradução de L’homme de la Pampa (Montevideo: Arca, 1969)

Supervielle morreu em Paris em 1960, aos 76 anos.

 

Referências bibliográficas

BLANCHOT, Maurice (1960). Oblieuse mémoire, in La Nouvelle Revue Française, n. 94, p 747

BRANDO. Óscar (2001). Jules Supervielle, in OREGGIONI, Alberto (org). Nuevo Diccionario de Literatura Uruguaya. Montevideo: Banda Oriental.

Dewulf, Sabine (2001). Jules Supervielle ou la connaissance poétique. Coll. Critiques littéraires. Paris:  L’Harmattan.

ETIEMBLE.  Supervielle. Paris: Gallimard, 1960.

Gledson, John (2003). Drummond e Supervielle, in Influências e impasses: Drummond e alguns contemporâneos. Tradução de Frederico Dantello. São Paulo: Companhia das Letras.

ROY, Claude (1953). Jules Supervielle. Collection Poètes d’aujourd’hui.  France: Editions Pierre Seghers.

SUPERVIELLE, Jules (1951). En songeant à un art poétique, in Naissances. Paris: Gallimard.

 

*Este texto contém trechos do artigo “Sobre a tradução de Oublieuse mémoire, de Jules Supervielle”, de minha autoria, publicado nos cadernos de Literatura em Tradução, da USP. Disponível em  http://www.revistas.usp.br/clt/article/view/49488/53572