Poetas-tradutores e a formação do cânone da poesia traduzida no Brasil*
Por MARLOVA G. ASEFF
*Este artigo é uma versão sem gráficos do texto “O papel dos poetas-tradutores na formação do cânone da poesia traduzida no brasil (1960-. 2009)”, originalmente publicado no Caderno de Letras, n. 23. Pelotas: Editora da UFPel, 2014. Pp. 17-36.
RESUMO: Este artigo analisa como a tradução interfere na formação dos cânones literários e aprecia a importância do trabalho tradutório de poetas brasileiros na configuração do cânone da poesia traduzida no Brasil entre 1960 e 2009.
PALAVRAS-CHAVE: Poetas-tradutores – cânone – tradução de poesia – história da tradução
ABSTRACT: This paper analyses how translation could take part in the creation of the literary canon. It also looks at the poets who translated poetry over five decades (1960-2009) and considers their influence on the creation of the translated poetry canon in Brazil.
KEYWORDS: Poet-translators – canon – poetry translation – translation’s history
- INTRODUÇÃO
Costumamos pensar que obras são traduzidas porque já alcançaram o estatuto de canônicas, ou seja, porque atingiram certa fama na sua cultura de origem. Dificilmente invertemos esse raciocínio para lembrar que se não fosse devido à tradução, o acesso às mesmas seria restrito aos leitores da língua do original. A obra de Homero poderia perpetuar-se sendo lida apenas pelos gregos? Teriam as suas histórias sobrevivido se não fossem inúmeros tradutores as reescrevendo ao longo dos séculos? Walter Benjamin afirma que é a tradução que, ao renovar a vida do original, torna-se responsável pela “fama” das obras, e não o contrário (BENJAMIN, 2001, p. 193). A proposição de Benjamin reforça a ideia de não há texto considerado clássico ou canônico que não tenha sido alvo de retraduções.[1] Por isso, a tradução, enquanto reescritura, seria uma força-motriz por trás da evolução literária.
A tradução, acredita André Lefevere, é o principal meio pelo qual uma literatura influencia a outra. Para o teórico, ao lado da historiografia, das antologias e da crítica literária, a tradução é uma atividade que prepara as obras para serem incluídas no cânone. (LEFEVERE, 2007, p.24). Lawrence Venuti, por sua vez, ressalta a importância da escolha dos textos a serem traduzidos para a formação do cânone. Afirma que “a escolha calculada de um texto estrangeiro e da estratégia tradutória pode mudar ou consolidar cânones literários e paradigmas conceituais […] na cultura doméstica” (VENUTI 2002, p. 131, grifo meu). Levando em conta tais proposições e tendo como base alguns dados compilados para a minha pesquisa de doutorado em Estudos da Tradução (ASEFF, 2012), tratarei do papel desempenhado por poetas brasileiros que se puseram a traduzir poesia e que, assim, influenciaram a constituição dos cânones da literatura brasileira na segunda metade do século 20 e primeira década deste século.
- CÂNONE E TRADUÇÃO
Os papéis desempenhados pela tradução nos sistemas literários são vários. Lefevere, por exemplo, acredita que dentre todas as formas de reescritura, a tradução é potencialmente a mais influente porque teria a capacidade de projetar a imagem de um autor ou de uma série de obras em outra cultura (LEFEVERE, 2007, p. 24). Além disso, a tradução também é vista como uma forma de medir o reconhecimento literário de uma dada literatura (CASANOVA, 2002, p.169). E para as línguas “alvo” qualificadas por Casanova como “mais desprovidas”, a tradução seria uma maneira de agrupar recursos literários, de importar grandes textos universais para uma língua “dominada”.
Mas, quais seriam, afinal, os mecanismos que podem levar um texto traduzido a integrar ou interferir no cânone de determinada literatura? Ou, ainda, como um determinado inventário de recursos literários importados conquista status ou admiração em um dado estrato do sistema literário? Para responder tais questões, é necessário retomar algumas abordagens sobre o cânone, sobre como pode se dar o estabelecimento do mesmo e, em seguida, analisar as possíveis funções desempenhados pela tradução e pelos tradutores nesse processo.
A palavra cânone, como é sabido, vem do grego kanon, significando régua, regra, medida, norma; ou seja, a sua própria etimologia indica um caráter normativo e delimitador. No âmbito da Igreja Católica, os livros considerados canônicos eram aqueles reconhecidos como “inspirados e dignos de autoridade” (COMPAGNON, 2001, p. 226). Norma, valor e autoridade são, portanto, três conceitos que costumam gravitar em torno da questão do cânone. Harold Bloom, que dedicou vários estudos à questão, acredita que o verdadeiro sentido do cânone seja o de indicar os livros que o indivíduo deve escolher para ler, pois uma vida humana é curta demais para dar conta de tudo o que já foi produzido pela cultura ocidental (BLOOM, 2010, p. 27). Para ele, o cânone designa
Uma escolha entre textos que lutam uns com os outros pela sobrevivência, quer se interprete escolha como sendo feita por grupos sociais dominantes, instituições de educação, tradições de crítica, ou, como eu faço, por autores que vieram depois e se sentem escolhidos por determinadas figuras ancestrais (IBIDEM, p. 33).
De forma mais ampla, para a literatura, o cânone costuma designar a lista de obras consideradas indispensáveis à formação dos estudantes, bem como os postulados ou princípios doutrinários que norteiam uma corrente literária (MOISÉS, 2004, p. 65). O cânone, portanto, pode ser entendido como uma lista de obras e também como um tipo de código, um modelo que deve ser seguido para que determinada obra seja considerada literatura em determinado espaço histórico. No primeiro sentido (de lista), Alastair Fowler aponta três formas ou níveis de cânone: a) o potencial, que abrangeria toda a extensão da literatura, tudo que o leitor pode potencialmente ler; b) o cânone acessível, aquela parte do universo potencial a qual os leitores têm acesso relativamente fácil na forma de reedições, edições econômicas ou antologias (e, por que não, traduções); e c) o seletivo, que englobaria as obras acessíveis que os leitores profissionais selecionaram como sendo dignas de maior atenção (FOWLER, 1982, pp. 213-216).
Even-Zohar delimitou dois usos do para o termo “cânone”. Também para ele, há uma canonicidade que se refere a textos (obras), e outra a modelos. Afirma que “uma coisa é introduzir um texto no cânone literário, outra é introduzi-lo através de seu modelo em um repertório”[2] (EVEN-ZOHAR, 1990, p.19). No segundo caso, certo modelo literário consegue se estabelecer como princípio produtivo por meio de seu repertório. Ou seja, a poética de determinada literatura, que vem a ser o seu inventário de recursos literários, gêneros, motivos, símbolos etc., é modificada. Portanto, quando a canonização se dá pelo modelo, e não por textos isolados, teríamos um tipo de canonização mais relevante para a dinâmica do sistema literário[3] (IBIDEM, p. 19). Nesse caso, pode ocorrer uma progressiva influência dos valores do grupo que o introduziu, uma vez que, em toda sociedade, em grau maior ou menor, existem sempre tensões entre a cultura canonizada e a não canonizada. Esse processo ficou muito evidente no Brasil no caso dos poetas concretos.
O estabelecimento do cânone também está ligado à questão do julgamento de valor, seara na qual as discussões estéticas misturam-se e confundem-se com as relações de poder. Nesse sentido, Lefevere lembra que o valor intrínseco de uma obra literária possui um papel muito menor no processo de recepção e sobrevivência das mesmas do que normalmente se pressupõe (LEFEVERE, 2007, p. 13). Na verdade, o próprio julgamento do que é ou não um texto literário é extremamente instável, e os juízos de valor, conforme Eagleton, “têm uma estreita relação com as ideologias sociais” (EAGLETON 1994, p. 17). Para Eagleton, sempre interpretamos as obras literárias “à luz de nossos próprios interesses” e essa “poderia ser uma das razões pelas quais certas obras literárias parecem conservar seu valor através dos séculos”(IBIDEM, p. 13, grifo meu). Diz ele:
Pode acontecer, é claro, que ainda conservemos muitas preocupações inerentes à da própria obra, mas pode ocorrer também que não estejamos valorizando a ‘mesma’ obra, embora assim nos pareça. O “nosso” Homero não é igual ao Homero da Idade Média, nem o “nosso” Shakespeare é igual ao dos contemporâneos desse autor. […] Todas as obras literárias, em outras palavras, são “reescritas”, mesmo que inconscientemente pelas sociedades que as lêem; na verdade, não há releitura de uma obra que não seja também uma “reescritura” (IBIDEM).
No conto “Pierre Menard, autor del Quijote”, Jorge Luis Borges demonstra com propriedade que o tempo altera substancialmente a recepção das obras, e que um mesmo texto assume significados bem diversos de acordo com o momento histórico em que é lido. Mesmo as obras que se mantêm no centro do cânone ocidental são ressignificadas de tempos em tempos por meio da crítica e também têm a sua linguagem atualizada por meio da tradução. Outro aspecto a se ter em mente é que um mesmo poeta pode ser traduzido com objetivos diferentes em épocas distintas ou na mesma época por poetas seguidores de diferentes poéticas. Por exemplo: o Rilke de Dora Ferreira da Silva não é o mesmo de Augusto de Campos; o Byron em tradução dos poetas românticos não é o mesmo do poeta-tradutor Paulo Henriques Britto.
Lefevere enumera alguns fatores que influenciariam na canonização ou na não canonização dos trabalhos literários. Para ele, muito mais que o valor em si, trabalhariam para a inclusão de obras/modelos no cânone o poder, a ideologia, a instituição e a manipulação. Ele explica que
Produzindo traduções, histórias da literatura ou suas próprias compilações mais compactas, obras de referências, antologias, críticas ou edições, reescritores adaptam, manipulam até um certo ponto os originais com os quais eles trabalham, normalmente para adequá-los à corrente, ou a uma das correntes ideológica ou poetológica dominante de sua época (IBIDEM, p. 23, grifo meu).
Por isso é relevante a informação de que muitos dos poetas-tradutores cujas escolhas apreciei em minha pesquisa atuem ou tenham atuado também como professores em instituições de ensino superior, como críticos, editores e organizadores de antologias, papéis esses que reforçam a sua posição no campo literário, somando às suas escolhas a força ideológica da instituição a que pertencem (ora como professores da Universidade, ora como membros da Academia Brasileira de Letras ou poetas agraciados por prêmios diversos de certas instituições).
- DISPUTAS PELO CENTRO DO CÂNONE
Se observarmos a evolução literária, veremos que periodicamente ocorrem mudanças. Octavio Paz nota que “a história da arte e da literatura se desdobra como uma série de movimentos antagônicos: romantismo, realismo, naturalismo, simbolismo”. Paz diz que na arte moderna, tradição significa ruptura e não mais continuidade. Estaríamos diante da “tradição da ruptura” (PAZ, 1996, p133-134). A arte contemporânea parece ter se tornado ainda mais provisória. Conforme Haroldo de Campos, essa arte produzida numa civilização em constante transformação “parece ter incorporado o relativo e o transitório como dimensão mesma do ser” (1976, p. 15). Lefevere tenta descrever esse processo de mudança no interior do sistema literário da seguinte forma:
Uma vez estabelecido um sistema literário, ele tenta alcançar e manter um “estado estável” […], um estado em que todos os elementos estejam em equilíbrio. […] Porém há dois fatores no sistema literário […] que tendem a agir contra esse desenvolvimento. Os sistemas se desenvolvem de acordo com o princípio da polaridade, que sustenta que todo sistema em algum momento desenvolve seu próprio contra-sistema, como a poética romântica, por exemplo, alguma vez virou a poética neoclássica de ponta cabeça, conforme o princípio da periodicidade, que sustenta que todos os sistemas estão sujeitos à mudança (LEFEVERE, 2007, p. 67).
Estando inserido nesse contexto de rupturas periódicas, temos, portanto, que a autoridade do cânone passa por contestações de tempos em tempos, fazendo com que esse conjunto de obras e/ou modelos seja questionado e revisado. Afinal, como vimos, a canonicidade não é algo inerente à obra. Acontece então de obras desconsideradas em um determinado período histórico passarem a ser valorizadas. A poesia de John Donne, por exemplo, foi “relativamente desconhecida e pouco lida […] até o seu redescobrimento por T.S. Eliot e outros modernistas” ( H. de CAMPOS, 1976, p. 13). No Brasil podemos citar o exemplo da obra de Sousândrade e de Gregório de Matos, o Boca do Inferno, ambas revalorizadas a partir da leitura de H. de Campos. Portanto, o canônico passa a ser simplesmente o conjunto de obras ou de normas aceitas em determinados períodos por determinados grupos.
Fica evidente que também no campo literário existem as disputas pelo “poder”, em busca da ocupação de certo “centro”. Ocorre o fenômeno de diferentes escolas críticas, conforme explica Lefevere, tentarem elaborar cânones próprios para firmar o seu próprio cânone como único (LEFEVERE, 2007, p. 55). Também podem ocorrer disputas entre centro e periferia, ou melhor, entre centros e periferias, entre literaturas diferentes e também no interior de uma mesma literatura. Casanova sublinhou esse viés de conflito no espaço literário em A república mundial das letras (2002). Nessa obra, ela esboça um princípio de história mundial da literatura na qual concebe o “universo literário” como palco assimétrico de disputas pela hegemonia intelectual, onde não faltam rivalidades, rebeldes e revoluções. Para Casanova, a luta pelo poder na “política literária” não segue os instáveis mapas geopolíticos, mas um mapa intelectual (IBIDEM, p. 24).
No Brasil dos anos 1950, isso ficou bem marcado pelas duas linhas críticas que se estabeleceram, representadas pelo grupo Clima (formado por jovens críticos literários procedentes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP) e pelo Noigandres (formado inicialmente pelos Irmãos Campos e por Décio Pignatari), oferecendo diferentes interpretações sobre a literatura brasileira, elegendo ao mesmo tempo as suas referências. Para Motta, “duas correntes críticas prestigiosas, uma histórico-evolutiva, sensível à ideia de ‘formação’, a outra apoiada numa ‘historia sincrônica’, ou num ‘tempo longo […], avessa à questão das origens primeiras, embora não à da originalidade (MOTTA, 2002, p. 44). Como sabemos, o grupo Noigandres foi o fundador do movimento da poesia concreta no Brasil. Esses poetas se rebelaram contra os preceitos estéticos da Geração de 45, formada por poetas que tinham como ponto de encontro o Clube de Poesia, em São Paulo.
“Não nos afinávamos com o conservadorismo da Geração de 45”, justifica Augusto de Campos ao falar do rompimento com o modelo poético vigente (PRIOSTE, 2004, p.13). Mais especificamente, o movimento da poesia concreta foi uma reação a um tipo de poesia de caráter sentimental ou confessional. Após a rebeldia representada pelo modernismo da Semana de 1922, houve uma reacomodação e um retorno aos valores mais tradicionais do verso. Os concretistas, então, propuseram uma retomada dos valores do primeiro modernismo. O manifesto “Plano-piloto para a poesia concreta”, publicado em 1958, afirmava que o ciclo histórico do verso enquanto unidade rítmico-formal estava acabado. Ao mesmo tempo, a partir dos anos 1960, começam a traduzir e a publicar as suas referências, ou seja, obras que compunham o cânone ou o “paideuma” do grupo, escolhidas no repertório da literatura mundial. Não foi por acaso, também, que as categorias de criação, crítica e do combate à suposta “inferioridade” da tradução frente ao original estiveram no centro do esforço teórico dos irmãos Campos.
No ensaio “Da tradução como criação e como crítica”, Haroldo de Campos, apoiado em Ezra Pound, defende que os motivos primeiros do tradutor que seja também poeta ou prosador deve ser a configuração de uma tradição ativa. Afirma que o escritor-tradutor, ao configurar determinada tradição por meio da tradução, faz um exercício de compreensão e também uma operação de crítica “ao vivo” (H. CAMPOS, 1976, pp. 31-32, grifos meus). Por isso, a escolha de textos por eles traduzidos não foi de modo algum aleatória, mas revelou quais os elementos da tradição que eles consideravam que permaneciam “matéria viva” para configurar o “presente poético”. Mais tarde, também iriam questionar, pelo lápis de Haroldo de Campos, o cânone literário de obras nacionais incluído na Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido, alegando que o período Barroco de nossa literatura, representado pelo poeta Gregório de Matos, havia sido injustamente “sequestrado” da Formação.[4]
Moriconi afirma que “a pedagogia concretista foi contraditória na exata medida em que conjugou práticas de guerrilha anticanônica ao discurso da imposição canônica” (MORICONI, 1996, p.304). Não vejo contradição, uma vez que esse grupo de poetas tentou enfraquecer ou invalidar certo cânone para colocar outro em seu lugar, o seu próprio. Na realidade, eram dois estratos do sistema literário brasileiro em disputa pela hegemonia. Even-Zohar deu o nome de estratificação dinâmica ao fenômeno das tensões entre estratos de um sistema, assim como a luta permanente entre vários estratos:
As tensões entre a cultura canonizada e a não-canonizada são universais. Estão presentes em todas as culturas, uma vez que uma sociedade humana não-estratificada simplesmente não existe, nem mesmo utopicamente. Não há linguagem não-estratificada, mesmo quando a ideologia dominante que gere as normas do sistema não permite uma explícita consideração de qualquer outro estrato além do canonizado. O mesmo é verdade para a estrutura da sociedade e para tudo envolvido nesse complexo fenômeno (EVEN-ZOHAR, 1990, p.16)[5].
Para Even-Zohar, as mudanças ocorrem quando um estrato vence o outro, fazendo com que alguns fenômenos sejam arrastados do centro para a periferia, abrindo caminho para outros ocuparem o centro. No entanto, para Even-Zohar, um polissistema nunca tem apenas um centro e uma só periferia, o que torna as análises mais complexas. Tais leituras enfatizam a multiplicidade de interseções possíveis e as tensões entre o centro do sistema e a sua margem ou periferia, entre os estratos canonizados e os não-canonizados. Attwater lembra que o cânone nunca se limita a uma única cultura: “toda a cultura tem o seu próprio cânone, sendo que o mesmo inclui textos traduzidos de várias outras culturas” [6] (ATTWATER, 2011, p. 28). Portanto, fica claro que o ato de escolher traduzir a obra de um poeta e não de outro pode assumir vários significados no interior de determinado sistema literário.
- O PAPEL DOS TRADUTORES
Anthony Pym admite que embora seja evidente que os tradutores tenham importância na história da tradução (e, por conseguinte, na história literária), é difícil dizer exatamente qual é o seu papel em termos coletivos ou individuais. Uma de suas hipóteses é de que os tradutores são “active effective causes” [literalmente, causas ativas efetivas], ou seja, sujeitos que intervêm na história e exercem um tipo de poder (PYM, 1998, p.161). Mas quais seriam as formas pelas quais os tradutores costumam intervir na história e exercer tal poder? Uma das possibilidades seria, é claro, quando os mesmos escolhem o que irão traduzir. Susana Kampff Lages afirma que “é preciso lembrar que por trás das motivações pelas quais certas obras adquirem importância em certas culturas, está a opção de certos escritores ou tradutores por traduzir determinadas obras” (LAGES, 2007, p. 88). É também como sustenta Leyla Perrone-Moisés ao estudar os escritores-críticos: “ao escolher falar de certos escritores do passado e não de outros, os escritores-críticos efetuam um primeiro julgamento. Assim fazendo, cada um deles estabelece a sua própria tradição e, de certa maneira, reescreve a história literária” (PERRONE-MOISÉS 2009, p.11). O mesmo pode-se dizer das escolhas tradutórias de poetas que vêm exercitando a tradução com certa regularidade no Brasil.
Poder-se-ia objetar que o tradutor nem sempre tem autonomia de escolha. Porém, mesmo quando não é ele quem escolhe a obra a ser traduzida, poderá talvez decidir de que forma irá traduzir (o repertório empregado, a estratégia tradutória, o projeto de tradução). Por certo, essas escolhas estarão geralmente condicionadas à poética vigente. Conforme Lefevere, “a luta entre poéticas rivais é quase sempre iniciada por escritores, mas quem ganha ou perde a batalha são os reescritores” (LEFEVERE, 2007, P. 67).
O tradutor, como queria Goethe, atua como um promotor desse “intercâmbio espiritual” entre as literaturas, e movimenta-se num espaço de intersecção entre culturas e línguas. E o tradutor que também atua como poeta ou escritor assume dois papéis: o de importador de textos e o de produtor em seu sistema literário. Por isso, saber se um tradutor de poesia é também poeta transforma-se em um fator relevante de análise, pois esse fato trará consequências ao sistema literário em questão. Como a tradução de poesia se processa numa operação profunda no interior da linguagem, que se materializa na operação de “desmontar” e “remontar” um poema, é possível sugerir que nessas circunstâncias (quando um poeta traduz outro) seja bem maior a chance de novos modelos serem inseridos com sucesso em um dado sistema literário. O contrário também é verdadeiro: o poeta-tradutor poderá também adaptar a poética do autor estrangeiro aos modelos predominantes em seu meio literário.
Em ambos os casos, o escritor ou poeta, ao incursionar pela tradução, atua na seleção do bem estrangeiro que passará a fazer parte do espaço nacional e empresta uma marcação a esse texto. Outro aspecto é o interesse de quem “se apropria” de um autor por meio da tradução. Ou, como disse Bourdieu, “publicar o que gosto é reforçar minha posição no campo [literário]” (BORDIEU, 2002, p. 4). O poeta-tradutor relaciona o seu nome ao do autor traduzido, fortalecendo a sua persona poética e ligando a sua imagem à do autor traduzido. Como resume Valery Larbaud, o tradutor “ao mesmo tempo em que amplia a sua riqueza intelectual, enriquece a literatura nacional e honra seu próprio nome” (LARBAUD, 2001, p. 73). Também as editoras, por vezes, procuram ligar o nome de um determinado escritor ou poeta à obra traduzida, por acreditar que o público o identifica com um dado gênero ou estilo literário.
Não quero dizer com isso que considere as escolhas tradutórias dos poetas uma mera questão de “marketing” literário. Elas representam, em grande parte dos casos, uma maneira que os mesmos encontram para aproximarem-se de determinada tradição, através da qual buscam o significado do seu fazer artístico. Para T.S. Eliot:
Nenhum poeta, nenhum artista de área alguma tem seu completo significado sozinho. O seu significado, a sua apreciação é a apreciação da sua relação com os artistas e os poetas mortos. Não se pode avaliá-lo sozinho; deve-se posicioná-lo, por contraste e comparação, entre os mortos. Digo isso como um princípio de crítica estética, não meramente histórica (ELIOT, 1950, p. 49).[7]
Assim, traduzir pode ser uma forma eficiente de se filiar a uma tradição, a uma estética ou a uma família poética.
- POETAS-TRADUTORES E A TRADUÇÃO DE POESIA NO BRASIL ENTRE 1960 E 2009
Para o levantamento realizado para a pesquisa de doutorado em Estudos da Tradução “Poetas-tradutores e o cânone da poesia traduzida no Brasil (1960-2009)” computei um universo de 314 tradutores de poesia atuando no Brasil num período de cinco décadas (1960-2009), sendo que, desses, 145 foram identificados como poetas. O critério para ser considerado um poeta foi o de ter reconhecimento no meio literário e pelo menos um livro de poemas publicado.
Mas para quê tentar quantificar os tradutores de poesia e, entre eles, os poetas-tradutores atuantes em um determinado período no Brasil? Pensando nos tipos de cânone propostos por Even-Zohar, temos que os poetas-tradutores, além de incluir a obra traduzida no sistema literário nacional, também tendem a introduzir um novo repertório aprendido e exercitado no processo de tradução no seu trabalho poético autoral. Já a identificação dos tradutores em geral serve como mais um dado para o mapeamento do nosso sistema literário e cultural, e que deve ser analisado em conjunto com os demais. Casanova, por exemplo, sustenta que o número de tradutores literários e de “poliglotas” que atuam num dado sistema literário é um aspecto relevante a ser destacado, pois, para ela, a presença desses “intermediários transnacionais” é um fator que dá a medida do poder e do prestígio de determinada literatura (CASANOVA, 2002, p.37).
A pesquisa indicou que, mesmo em menor número, os tradutores que também são/eram poetas assinaram um número maior de traduções no período estudado. Do total de 452 obras poéticas de autores individuais[8] traduzidas e editadas e que aparecem no levantamento bibliográfico, 309 delas tiveram a sua tradução assinada por pelo menos um poeta (por vezes, a tradução é assinada por vários tradutores) e apenas 143 por não-poetas. Isso pode ser verificado no Gráfico 2:
Assim, conforme o levantamento bibliográfico, os poetas-tradutores foram responsáveis por quase sete entre dez traduções poéticas publicadas no Brasil no período estudado. A influência dos poetas-tradutores é ainda maior no segmento das antologias. Constatou-se que das 104 antologias mistas de poesia estrangeira publicadas entre 1960-2009, 76 delas, o equivalente a 73%, foram organizadas e/ou traduzidas por poetas, 27 foram organizadas e/ou traduzidas por não-poetas e de apenas uma não se encontrou referências do tradutor. A antologização é um relevante fator para a canonização de uma obra ou modelo literário, uma vez que ao selecionar e organizar os textos, editores e tradutores procedem a uma manipulação que interfere em sua recepção. Elas também teriam o poder de refletir, expandir ou redirecionar o cânone de determinado período (GOLDING, 1984, p. 279). A disponibilidade de textos traduzidos reunidos em antologias também traz consequências nas instituições de ensino, visto que as antologias costumam ser bastante usadas para fins didáticos. E, do ponto de vista editorial, é por meio desse tipo de publicação que os editores têm um instrumento para captar a atenção de determinado público e testar a aceitação de novos autores e mercados. Portanto, o protagonismo dos poetas-tradutores na organização e/ou tradução de antologias é mais um forte indicativo da sua interferência no sistema literário brasileiro.
Pode-se observar que em todas as décadas estudadas é muita alta a proporção de antologias em cujos projetos estavam envolvidos poetas-tradutores, não baixando de 60%, na década de 1960, e alcançando o nível máximo de 88% na década de 1980. Na década de 1970, a proporção foi de 60% e nas décadas de 1990 e 2000, 75% e 70% respectivamente. Se a antologização, como vimos, é um fator relevante de inclusão no cânone, é preciso admitir que os poetas-tradutores exerceram o seu poder.
- CONCLUSÕES
A intensa atividade tradutória dos poetas no Brasil nos últimos cinquenta anos ampliou o contato das letras brasileiras com diversas literaturas estrangeiras. Pode-se dizer que tal relação intensificou-se a partir do projeto dos poetas concretos, por isso a sua experiência e o seu paideuma são um referencial para se analisar a poesia traduzida no Brasil a partir dos anos de 1960. Assim como para Ezra Pound, para os irmãos Campos, a escolha tradutória foi vista como o fruto de uma “militância” em prol de um projeto estético para o presente. O aparentemente simples ato de escolha de um título e da maneira como se iria traduzi-lo começou a ser encarado como uma forma de intervenção e de poder exercida pelo tradutor, além um ato de crítica.
Ao escolher certas obras para traduzir, os poetas trabalharam pela continuidade ou pelo rompimento de determinado cânone e, ao mesmo tempo, buscaram as suas filiações poéticas e caminhos para a sua produção autoral. As escolhas dos poetas-tradutores contribuíram para a configuração dos atuais cânones poéticos no Brasil, não somente do cânone da poesia traduzida, mas também de novas formas e/ou dicções poéticas da própria poesia brasileira. Conforme vimos anteriormente com Even-Zohar, quando um modelo é inserido no repertório de recursos poéticos de uma língua, ocorre um tipo de canonização de maior relevância para o sistema literário do que a simples presença de um texto traduzido. Por isso mesmo, quando o tradutor é também poeta, são maiores as chances da assimilação de novos recursos estilísticos no repertório poético local. Ao usar a tradução como forma de exercício poético, o poeta quase sempre levará algo dessa experiência para a sua produção autoral. Além disso, boa parte dos poetas, além da tradução, estiveram, em geral, envolvidos em outras atividades que preparam as obras para a canonização, como a antologização ou a crítica exercida nos prefácios das traduções.
Por meio do levantamento das traduções realizadas pelos poetas-tradutores foi possível medir a intensidade da prática da tradução entre eles tradutores e o peso de suas escolhas tradutórias no universo da tradução de poesia no Brasil entre 1960 e 2009. Chegou-se a um número de 314 tradutores de poesia com traduções publicadas em livro no Brasil, sendo que 145 deles foram identificados como poetas. Ou seja, os poetas representaram 46% do universo pesquisado, enquanto os tradutores de poesia que não são/eram poetas constituíram a maioria: 54%. No entanto, surpreendeu o fato de que, mesmo em minoria numérica, os poetas-tradutores foram responsáveis por 68% dos títulos de poesia traduzida publicados (autores individuais) no período pesquisado. Esse é um indicativo quantitativo da produtividade e do engajamento dos poetas na tarefa da tradução de poesia no Brasil. No caso das antologias mistas, os poetas-tradutores estiveram envolvidos em 72% dessas publicações, uma mostra da sua ascendência no sistema literário e na canonização de obras e modelos. Em todas as décadas estudadas, foi expressiva a participação dos poetas-tradutores como organizadores e tradutores de antologias de poesia traduzida, variando entre 56% na década de 1960 até 88% na década de 1980.
O levantamento bibliográfico de tradução de poesia que serviu de base para este estudo também acabou por revelar variados aspectos dessa área da cultura no Brasil, tanto em termos quantitativos como qualitativos. A partir do conjunto dos dados colhidos, chegou-se a uma clara percepção do espaço conquistado não somente pelos poetas-tradutores, mas também pela própria tradução de poesia no sistema literário brasileiro.
- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASEFF, Marlova Gonsales (2012). Poetas-tradutores e o cânone da poesia traduzida no Brasil (1960-2009). Tese de Doutorado do Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução, UFSC.
ATTWATER, Juliet (2011). Translating brazilian poetry: a blueprint for a dissenting canon and cross-culture anthology. Tese de doutorado do Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução, UFSC.
BOURDIEU, Pierre (2002). As condições sociais da circulação internacional das idéias. In Enfoques – Revista Eletrônica. Rio de Janeiro, v.1, n. 01. Tradução de Fernanda Abreu.
BLOOM, Harold. (2010). O cânone ocidental. Rio de Janeiro: Objetiva. Tradução de Marcos Santarrita.
CAMPOS, Haroldo (1976). Metalinguagem. São Paulo: Cultrix.
CASANOVA, Pascale (2002). A república mundial das letras. São Paulo: Estação Liberdade. Tradução de Marina Appenzeller.
COMPAGNON, Antoine (2001). O demônio da teoria. Literatura e senso comum.Belo Horizonte: Editora UFMG. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago.
EAGLETON, Terry (1994). Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes. Tradução de Waltensir Dutra.
EVEN-ZOHAR, Itamar (1990). Polysystem studies. In Poetics Today – International Journal for Theory and Analysis of Literature and Communication, Volume 11, n.1. Edição do autor disponível em http://www.tau.ac.il/~itamarez/works/books/ez-pss1990.pdf.
FOWLER, Alastair (1982). Kinds of literature: an introduction to the theory of genres and modes. Cambridge, Mass.
FRANK, Armin Paul (2001). Anthologies of translation. In BAKER, Mona (ed.) Encyclopedia of translation studies. London and New York: Routledge. Pp.13-16.
GOLDING, Alan (1984). A history of American Literature and the Canon. In HALLBERG, Robert. Canons. University of Chicago Press
LARBAUD, Valery (2001). Sob a invocação de São Jerônimo. São Paulo: Mandarim. Tradução de Joana Angélica D’Avila Melo e João Angelo Oliva.
LEFEVERE, André (2007). Tradução, reescrita e manipulação da fama literária. Bauru, SP: Edusc. Tradução de Claudia Matos Seligmann.
MORICONI, Italo (2010). Apresentação. In: Destino: poesia. Antologia. Rio de Janeiro: José Olympio.
MOISÉS, Massaud (2004). Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix.
MOTTA, Leda Tenório da (2002). Sobre a crítica literária brasileira no último meio século. Rio de Janeiro: Imago.
PAZ, Octavio (1996). Literatura e literalidade. In Convergências – Ensaios sobre arte e literatura. Rio de Janeiro: Rocco. Tradução de Moacir Werneck de Castro.
PRIOSTE, José Carlos (2004). Além do limite do verso. Entrevista com Augusto de Campos. In Poesia Sempre. Biblioteca Nacional, ano 12, nº 19, dezembro.
PYM, Anthony (1998). Method in translation history. St Jerome Publishing.
VENUTI, Lawrence (2002). Escândalos da tradução. Bauru: Edusc. Tradução de Laureano Pelegrin et al.
[1] No entanto, é preciso lembrar que apenas o fato de ter sido alvo de retraduções não é por si só suficiente para a inclusão de determinada obra no cânone.
[2] “It therefore seems imperative to clearly distinguish between two different uses of the term “canocity”. For it is one thing to introduce a text into the literary canon, and another to introduce it through its model into some repertoire.”
[3] Diz Even-Zohar: “In the second case, wich may be called dynamic canocity, a certain literary model manages to establish itself as a productive principle in the system through the latter´s repertoire. It is the latter kind of canonozation wich is the most crucial for the system´s dynamics”.
[4] Ver O sequestro do barroco.
[5] “The tensions between canonized and non-canonized culture are universal. They are present in every human culture, because a non-stratified human society simply does not exist, not even in Utopia. There is no un-stratified language upon earth, even if the dominant ideology governing the norms of the system does not allow for an explicit consideration of any other than the canonized strata. The same holds true for the structure of society and everything involved in that complex phenomenon.”
[6]“ Nor is canon limited to a single culture; each culture has its own and in any one culture the canon will
include texts translated from several.”
[7] “No poet, no artist of any art, has his complete meaning alone. His significance, his appreciation is the appreciation of his relation to the dead poets and artists. You cannot value him alone; you must set him, for contrast and comparison, among the dead. I mean this as a principle of æsthetic, not merely historical, criticism.”
[8] Chamo de obras de autores individuais aquelas traduções cujo original é de autoria de apenas um poeta, ou seja, que não se configuram como antologias com poemas de vários poetas.