Nina Rizzi fala sobre a tradução de Alejandra Pizarnik

Nina Rizzi fala sobre a tradução de Alejandra Pizarnik

ALEJANDRA PIZARNIK: ÁRBOL DE DIANA – IM/POSSÍVEL TRADUÇÃO

Por Nina Rizzi

Alejandra Pizarnik é uma das vozes poéticas contemporâneas mais importantes da Argentina. Sua poesia, conforme nos diz sua amiga e organizadora de sua Poesia Completa, Prosa Completa, Diários e Nueva Correspondéncia (juntamente com Ivonne Bordelois) Ana Becciu em prefácio aos Diários: é uma escritura densa até o intolerável, cada um de seus poemas é uma verdade, uma poesia que põe em cena o silêncio, abrindo o poro criativo. Tendo escrito entre os anos 1950 e 1972, marcou as gerações posteriores e abriu uma porta para novas poetas mulheres.

Estudos sobre a obra de Alejandra Pizarnik crescem paulatinamente, com edições completas de sua prosa, poesia e diários em alguns países. No Brasil, no entanto, só temos publicado A Condessa Sangrenta, em tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro, pela Editora Tordesilhas, esta tradução para Árbol de Diana – além de outra a ser publicada, possivelmente em abril de 2018 juntamente com Los trabajos y las noches, em tradução de Davis Diniz pela Edições Relicário. Vinícius Ferreira Barth traduziu La tierra más ajena integralmente para a revista eletrônica escamandro (confira aqui), além de diversas outras tradutoras e tradutores em publicações esparsas na internet.  Josiane Maria Bosqueiro traduziu as obras La última inocencia e Las aventuras perdidas, em sua dissertação de mestrado no IEL/ UNICAMP, e muitos outros trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses comentando sua obra tem aparecido por aqui.

Nos EUA, se encontra o Archivo Pizarnik, na Universidade de Princeton, composto por diários, manuscritos, correspondências, pinturas e escritos vários; é um dos mais consultados por pesquisadores de todo mundo. Segundo Don C. Skemer, responsável pelos manuscritos da Biblioteca da Univesidade de Princeton, foi Aurora Bernárdez, viúva de Julio Cortázar que lhe entregou pessoalmente o material que conservava em seu apartamento em Paris e o colocou em contato com a família de Pizarnik há mais de quinze anos e concordou que a obra fosse ali depositada para conservação e consulta. Sua biblioteca pessoal foi doada para a Biblioteca Nacional de Maestros, que fica no Palacio Pizzurno, sede do Ministério da Educação e Esportes, em Buenos Aires.

Alejandra, nome que escolheu e adotou já na publicação de seu segundo livro, nasceu Flora Pizarnik Bromiker, em 29 de abril de 1936, em Buenos Aires. Seus pais, os judeus Elías Pozharnik e Rejzla Bromiker (mais tarde Rosa), vieram de Rovene, Europa Oriental, hoje Eslováquia, em 1934. O nome Pizarnik foi trocado, possivelmente por um erro dos funcionários da imigração. O pai trabalhava como cuentenik, ofício tradicional da comunidade judia: vendia joias, roupas e eletrodomésticos de porta em porta; era ainda socialista, tocava violino e foi integrante de uma orquestra. Desfrutar de uma educação liberal e orientada pelas artes e a música

Em 1954 Alejandra ingressa na Universidade de Buenos Aires onde estuda Jornalismo, Filosofia e Letras, abandonando três anos depois. Seu professor de literatura, Juan Jacobo Bajarlia, que se tornou grande amigo e a chamava de Buma (flor em ídiche), foi quem a iniciou na leitura crítica, especialmente dos surrealistas. Teve aulas de pintura com Juan Batlle Planas e então todos os seus sentidos artísticos, a literatura e a pintura, se afloram, tendo participado inclusive de três exposições em Buenos Aires.

Em 1955 publica seu primeiro livro de poemas La tierra más ajena, que depois renega resolutamente, não o considerando parte de sua obra. Em 1956 aparece seu segundo livro La última inocencia, que dedica a seu analista e depois amigo com quem mantém por quase toda vida abundante correspondência, León Ostrov.

Torna-se não só amiga, mas é apadrinhada e admirada como uma enfant terrible por diversos escritores da época como Olivério Girondo, Silvina Ocampo, Adolfo Bioy Casáres, Jorge Luís Borges, Olga Orozco, Juan Jacobo Bajarlía, Roberto Juarroz, entre outros. A partir daí, passa a escrever intensamente e a assumir essa personagem poética segundo o ideal de “fazer versos a cada minuto do viver/ fazer do próprio corpo, o corpo do poema”.

Além da vasta produção poética e da prosa – ensaios, contos, teatro e alguns rascunhos de narrativas maiores – Alejandra escreve um diário onde expõe mais suas intensões literárias, à maneira de um Kafka, embora apareçam também em menor medida suas angústias, paixões e imaginário homoerótico.

Durante os anos 1960 a 1964 vive em Paris, estuda História da Religião e Literatura Francesa como aluna especial na Sorbonne, escreve para as revistas Cuadernos, Sur, Nouvelle Révue Française, Mito e Les Lettres Nouvelles, além de traduzir (continuando até 1972) Antonin Artaud, Henri Michaux, Aimèe Cesairé, Yvves Bonnefoy, Marguerite Duras, William Shakespeare, Ievguêni Ievtuchenko, Paul Éluard, André Breton, Michel Leiris, André Pieyre de Mandiargues, Salvatore Quasimodo (em colaboração com María Cristina Giambelluca) e Pablo Picasso (El deseo atrapado por la cola, inédito conforme consta no Archivo Pizarnik/ Princeton). Nesse período conhece e fica amiga de grandes escritores como Georges Bataille, Júlio Cortázar, Simone de Beauvoir e Octavio Paz que escreveu o prólogo de seu livro Árbol de Diana que acabou por lança-la ao Olimpo dos grandes escritores latino-americanos.

De volta a Buenos Aires, publicou seus três últimos livros: Los trabajos y las noches, Extracción de la piedra de locura e El infierno musical e a prosa La condesa sangrienta. Recebeu os prêmios: Premio Municipal de Poesía (1965), Beca Guggenheim en Artes América Latina y Caribe (1969) e Beca Fulbright (1971).

Apesar da intensa vida social, Alejandra Pizarnik mesclava momentos de intensa euforia à melancolia mais profunda, de perturbações mentais angustiantes, tomava anfetaminas, ansiolíticos e esteve internada em hospitais psiquiátricos diversas vezes. Com o passar dos anos, foi se tornando cada vez mais reclusa e intensificando seu projeto poético, não são raras as vezes em que diz em seu diário que era preciso abrir mão de uma vida real, para re-construir-se no texto.

Na madrugada de 25 de setembro de 1972, enquanto passava uma temporada fora da clínica psiquiátrica onde estava internada, Alejandra Pizarnik toma uma dose excessiva de barbitúricos e morre.

Legou-nos vasta obra: La tierra más ajena, 1955; Un signo en tu sombra (plaquete), 1955; La última inocencia, 1956; Las aventuras perdidas, 1958; Árbol de Diana, 1962; Los trabajos y las noches, 1965; Extracción de la piedra de locura, 1968; Nombres y figuras, 1969; Poseídos entre lilas, 1969 (teatro); El infierno musical, 1971; La condesa sangrenta (prosa), 1971; Los pequeños cantos, 1971. Em tradução: André Breton, Paul Éluard: 1972; Marguerite Duras: La vida tranquila, 1972; André Pieyre de Mandiargues: La marea, 1971; Antonin Artaud: Textos (em colaboração com A. López Crespo), 1971; além de diversas outras traduções em revistas não coligidas em livros; Postumamente: El deseo de la palabra (seleção de poemas e textos críticos), 1975; Zona prohibida, 1982 (Poemas, e desenhos); Poemas, 1982; Textos de Sombra y últimos poemas, 1982; Entrevistas, 1978; Correspondencia Pizarnik, 1998; Obras completas, 2000 (Poesia e prosa); Poesía completa, 2000; Prosa completa (que inclui seus textos críticos), 2002; Diarios, 2003; além das diversas traduções que não foram coligidas em obra única.

Meu contato com a obra de Alejandra Pizarnik se iniciou por volta de 2007, quando estive na Argentina e, de lá pra cá, um alumbramento, um silêncio, um pássaro se debatendo em fuga a cada leitura. Desde 2011, estou trabalhando na tradução de suas obras, além de em janeiro de 2018 concluir o mestrado em Literatura pela Universidade Federal do Ceará, onde traduzo e comento seus livros Árbol de Diana, El Infierno Musical, Otros Poemas (poemas não coligidos em obras e que fazem parte do Archivo Princeton) e Textos de Sombra.

E é assim que depois de sete anos debruçada na obra toda da autora (poesia, prosa, ensaio tradução), dormindo com ela, viajando com ela, conhecendo e abraçando sua família e amigos, escrevendo, reescrevendo y borrando, amando y amando… depois de todo imbróglio editorial, eu me impossibilitou até o momento de publicar oficialmente por uma casa editorial, cá estamos na alegria do livro independente e artesanal.

Publicado pela primeira vez em 1962, Árbol de Diana tem nesta tradução uma lembrança dos 55 anos da obra e dos 45 anos da morte de Alejandra Pizarnik. É ainda uma homenagem, a todo silêncio que também é ruído. Aos poetas desconhecidos e às tribos e gentes arrasadas, aos que não têm uma língua, às crianças, aos animais, à poesia – a rapina não triunfará.

No livro encontramos o ápice de um projeto literário desde seu início poético: a necessidade de que o ansiado silêncio tenso se materialize no poema; ainda a palavra exata, onde se fundem signo e referente para criar uma realidade transcendente; onde a concisão e brevidade que configuram o poema como um teorema, reduzindo ambiguidades, com essencialidade poética.

No dia 08/02/1959, em seu Diários, reclamava “uma poesia que diga o indizível – um silêncio -. Uma página em branco”[1].  Desejo explicito nos dois poemas de Árbol de Diana:

6

Ela se desnuda no paraíso

de sua memória

ela desconhece o feroz destino

das suas visões

ela tem medo de não saber nomear 

o que não existe. [2]

 

18

como um poema consciente

do silêncio das coisas

fala para não me ver[3]

          Segundo Ivone Bordelois no prefácio de sua Nueva Correspondéncia, a poeta soube arrancar do idioma uma entonação desconhecida, onde se percebe o mais intenso, desconhecido e de maneira inimitável:

[…] Alejandra realiza uma operação estranha com o espanhol, língua sólida, sonora e solar em sua matéria bruta, e em sua escritura se torna um idioma vacilante e noturno, frágil e misterioso, cheio de ardis e vislumbres, muito mais sútil e profundo do que costuma ser; sondagens e resistências que cedem ao caminho de uma voz única e irrepetível.[4]

            Octavio Paz percebe essa dobra na língua operada por Pizarnik, como diz no prólogo de Árbol de Diana, “[Alejandra] leva a cabo uma cristalização verbal por amálgama de insônia passional e lucidez meridiana em uma dissolução de realidade submetida às mais altas temperaturas”.

            Como poderemos atestar na leitura da obra, essa precisão de Alejandra ao lidar com a inflexão única de cada palavra junto a uma espécie de eletricidade negra se propaga em uma escritura de rara exatidão, mesmo nos textos posteriores a Árbol de Diana, mais fragmentados e próximos à prosa poética. É esse impacto central que busquei na tradução.

A busca não pode deixar de ser louca, já que: traduzir é perder o corpo, já marcado por violência física, uma luta corporal entre duas línguas que já estavam internamente em guerra civil (DERRIDA, 2005, p. 170): a tradução pressupõe essa luta com a língua materna – aquela que não se tem – e não só com a língua do outro, a estrangeira. Só podemos concordar com Derrida, para quem o poeta-tradutor é exemplar em seu papel de afirmação da impossibilidade de apropriação de uma língua por uma nação ou povo.

          Como alcançar “o idioma vacilante e noturno” que sequer existe na língua materna que a poeta (não) tem? Como alcançar a “cristalização verbal por amálgama de insônia passional e lucidez meridiana”? “Como queres tu encontrar o tom, com a puta desta língua? Como queres desposá-la e fazê-la cantar?” (DERRIDA, 2016, p. 19).

Alcançar o impossível junto da escritura: essa delicadeza negra e úmida, mas brilhante como o mais profundo branco. Às vezes não deixamos de sentir que a sintaxe precisa se despedaçar para ser então pintada, como numa tela, essa palavra silêncio que é ainda um ruído, essa palavra que não representa, não constrói, e que vive do som.

Para alcançar o impossível, num caminho já pontado por Vinícius de Ferreira Barth, não há clareza como regra: com métrica e sintaxe livres como a da poeta, às vezes retorcidas, tentamos seguir a emoção dessa escritura, mas também o ritmo, para não cair em caminhos tão dispares dos versos que se nos apresentam; a semelhança entre os idiomas de chegada e partida nos permitem diversas vezes a simples transposição vocabular, mas há esses momentos em que nos perdemos no bosque pizarnikiano e voltar é doído.

Optei por manter o texto em primeira pessoa, diferente das muitas traduções que encontramos na internet, tanto em sites portugueses como brasileiros, para nos acercarmos mais intimamente da experiência poemática, tal como a dicção brasileira e seu caráter mais íntimo, bem como a maneira como nos chega a escritura de Pizarnik. Alguns versos podem soar “estranhos”. E são mesmo, mas aí estão:

Línguas passam à minha língua, se compreendem, se chamam, se tocam, com ternura, com temor, com voluptuosidade; mesclam seus pronomes pessoais, no bulir das diferenças […] Não se escreve: me atravessa, me faz amor, amar, falar, rir ao sentir seu ar me atravessar a garganta[…] A mãe [poema-tradução] que eu falo nunca esteve sujeita à gramática lobo. Em mim ela canta e passeia, eu tenho o acento justo, mas voz iletrada […] não abandoná-la à violência cega da tradução. Se não possuo uma língua [que diga “muito exatamente”], posso ser possuída por ela: consentir que a língua continue me sendo estranha. Amá-la como a minha próxima. [Não posso dizer, ninguém o poderia], mas em meu ventre, em meus pulmões, em minha garganta, as vozes dessa mulher estrangeira me fazem gozar, e a que me vem à boca é a água é água de uma mãe […] A escritura é o infinito […] A escritura ou Deusa. Deusa a escritura […] carne a escritura jamais lida: sempre por ler, estudar, buscar, inventar. Fazer-lhe amor.[5]

 Por fim, não esqueçamos nunca: uma tradução, esta tradução, jamais poderá ser definitiva, é uma aproximação marcada pelo presente dessa tradução. Assim, apresento a  Árvore de Diana, ainda inédito no Brasil, com o convite a ler o original que acompanha a edição bilíngue, inclusive a fazer sua tradução pessoal – que findamos fazendo mentalmente quando lemos noutra língua.

*

Para saber mais sobre outras traduções de Nina Rizzi para Alejandra Pizarnik e outras autoras e autores e baixara o livro integralmente clique aqui: http://ninaarizzi.blogspot.com.br/p/alejandra-pizarnik-uma-traducao.html

Para adquirir a edição artesanal entre em contato com a tradutora: ninarizzi@gmail.com

[1] “una poesía que diga lo indecible —un silencio—. Una página en blanco” (Pizarnik 2003, p. 140).

[2] 6// ella se desnuda en el paraíso/ de su memoria/ ella desconoce el feroz destino/ de sus visiones/ ella tiene miedo de no saber nombrar/ lo que no existe. (AD, 1962)

[3]18// como um poema enterado/ del silencio de las cosas/ hablas para no verme (AD)

[4] […] Alejandra realiza una operación muy extraña en el español, lengua sólida, sonora y solar en su sustancia prima, que con ella se vuelve un idioma vacilante y nocturno, frágil y misterioso, lleno de acechanzas y vislumbres, mucho más sutil y profundo de lo que suele ser; tanteos y resistencias que ceden al paso de una voz única e irrepetible.

[5] Lenguas pasan a mi lengua, se comprenden, se llan, se tocan, se alteran, com ternura, com temor, con voluptuosidade; mezclan sus pronombres personales, em el bulir de las diferencias […] No se escribe: me atraviesa, me hace amor, amar, hablar, reír al sentir su aire acariciarme la garganta […] La madre que yo hablo nunca estuvo sujeta a la gramática lobo. En mí ella canta y deambula, yo tengo el acento justo, pero la voz iletrada […] no abandonarla a la violencia ciega de la traducción. Si no posees una lengua puedes ser poseída por ella […] Ámala  como a tu prójima. […] Pero en mi vientre, en mis pulmones, en mi garganta, las voces de mujeres extranjeras me hacen gozar, y la que viene a boca es el agua de una madre […] la escritura es lo infinito […] La escritura o Dios. Dios la escritura […] carne es la escritura, y la escritura no está leída jamás: está siempre aún por ler, por estudiar, por buscar, por inventar. (Cixous, op. cit., pp. 39-41), como se pode ver, trata-se muito mais de uma transcriação-teoria para a tradução que se segue.